A Cortina de Fumaça
Correspondente: COSME ARISTIDES
Há alguns anos, num acampamento no parque de Itatiaia, tive um contado imediato do terceiro grau com um ser que vive numa extensão negligenciada da realidade. Acreditem ou não era um elfo. Ele logo me perguntou se havia tomado alguma coisa. Ainda aturdido e não entendendo direito a pergunta, respondi que não. Arranhou-se em algum arbusto? Voltou a perguntar. Não me lembrava. Tem alguma ferida aberta? Insistiu. Tinha. Naquela tarde havia tentado escalar as agulhas negras e escorreguei nas pedras, ferindo a parte posterior da coxa.
– E o que isso tem a ver?
– O limo da pedra.
– O que tem o limo da pedra?
– Alucinógeno.
– Não sabia que o limo era...
– Nem todos... Nem todos... Só o de certas pedras muito raras.
– E justo escorreguei numa destas.
– É.
– Então, você é uma alucinação.
– Que conclusão estúpida.
– Não diga isso. É o que parece. Nunca vi um elfo ao vivo.
– Então, prazer. Wedat Avlis; elfo em carne e osso como você.
– Em carne e osso... Posso tocar?
– Pode. Tome toque meu braço.
– Você está com febre?
– Não. Minha temperatura basal é maior que a sua.
– Ah, bom. Qual era mesmo o nome que disse?
– Wedat Avlis.
– Muito prazer, Marcelo Santana.
Assim nos tornamos amigos. Ele me ensinou como entrar naquela consciência alterada sempre que quisesse, sem recorrer a plantas. Um dia, conversamos sobre contos de fadas e como os elfos apareciam neles. Daí para chegar aos rpg’s foi um salto. Até que veio a baila o assunto sobre vampiros. De repente, ele se tornou grave e disse que essas criaturas realmente existiam. Por certo, disse eu, se elfos existem, porque não vampiros? Só que eles não se limitam a habitar uma extensão negligenciada de sua realidade; vocês esbarram neles na rua. Disse seriamente para quebrar meu ar jocoso.
Peguei, então, o meu “Vampiro, A Máscara” e mostrei a ele. A capacidade intelectual dos elfos é indescritível. Leu todo o livro em meia hora e disse que demorou porque havia repassado algumas partes. Fechou o livro e meditou uns instantes para logo sentenciar:
– O titulo é apropriado, mas não no sentido que o autor lhe deu. Ele chegou só até o embuste feito para engabelar quem metesse o nariz onde não era chamado. O livro descreve bem a máscara que essas criaturas abiológicas usam para enganar os que não acreditam em sua inexistência. Ela os faz supor que encontraram a verdade nos fatos forjados sobre a sociedade e origem dos vampiros, desviando seus olhares da autêntica face desses seres. Não são tão poderosos como querem ostentar, não criaram uma sociedade aparte da humana, pois nada possuem que não seja humano. São criaturas patéticas e frágeis; o glamour e a sedução que aparentam desvanece diante de uma inspeção mais apurada. Para confundir seus perseguidores adotaram a identidade de seus maiores antagonistas. Deturparam livros bíblicos para camuflar sua origem mítica. Conseguiram que o culto ao seu deus sanguinário fosse instituído como religião de muitos humanos, os quais foram sujeitados pelo temor e pela crença de serem servos. Direcionaram a hostilidade humana para seus acusadores, imputando a estes seus próprios crimes. Por fim, sua imortalidade é muito mais precária que nossas vidas.
Fiquei completamente chocado. Essa era uma imagem inédita para mim e meus amigos que jogavam vampiro. Comparada com esta, nossas imagens eram românticas e até poéticas, ingênuas no final das contas. Disse-lhe que precisava de toda essa estória dos vampiros escrita e esclarecida. Ele falou que não era difícil, pois já escrevera alguns artigos sobre o tema para a Academia Élfica de Ciências, da qual era membro. Bastava-lhe apenas traduzir para o português.
E é esse o texto que passo para vocês.
Levando em conta minhas humildes referências, digo que o ser abiólogico tido como lenda e superstição popular entre os humanos e, como tal, conhecido pela alcunha de vampiro deve sua existência à uma mudança radical no circuito energético humano (CEH).
No limiar da morte o circuito de qualquer ser biológico entra num processo de dissolução, tornando maleáveis seus contornos e trajetos. Neste momento, é possível conduzir uma rápida reengenharia circuital para obter uma nova configuração de canais. Esse novo desenho de circuito só se manterá se logo for ativado por uma nova fonte de energia, a do circuito matriz foi perdida com o inicio da morte. Lógico que a forma dos trajetos não pode ser arbitrária, deve efetivar o fluxo energético de um ser em animação vitóide, isto é, semelhante à vida. Os circuitos biológicos, por serem abertos e dissipativos, carregam uma complexidade que os inviabiliza para uso nesta técnica, a qual precisa ser automatizada para garantir a rapidez requerida. Os circuitos abiológicos ou vitóides, ao contrário, se prestam muito bem, pois são simples, fechados e não dissipativos, exigindo baixas doses de energia para se ativar e se manter. O inconveniente é que esta energia necessita ser fornecida já completamente retificada. Os sub-circuitos metabólicos são exclusivos de configurações biológicas, não é cabível sua implementação em modelos energéticos fechados. Outra deficiência severa encontrada é a estreita faixa operacional na curva de desempenho dos circuitos fechados; diversas prescrições de uso devem ser observadas para manter o ponto de operação rigorosamente fixado num ínfimo intervalo de comportamento estável, qualquer deslocamento é irreversível e leva a um funcionamento errático que, invariavelmente, produz sobrecarga, resultando numa desestruturação completa e dramática de todo o sistema energético.
O circuito energético vampírico (CEV) é formado tendo como matriz um CEH. Isto é feito levando a vítima a um estado próximo da morte. O método clássico utilizado pelos vampiros é a drenagem integral do sistema circulatório. As mitologias correntes até propalam que essa é uma etapa necessária, algumas, inclusive, afirmam ser suficiente. Não é necessária, muito menos suficiente; qualquer fato que desencadeie a morte do indivíduo se presta a esse fim, isto é, molificar o CEH e deixá-lo pronto para receber o molde do CEV. A preferência vampírica recai nesse método por conduzirem uma hemorragia controlada que lhes garante detectar com segurança o momento em que o CEH atinge o estado ideal de maleabilidade. Esse instante é muito breve e fugidio, se deixado escapar, a morte sobrevém e a matriz é perdida. O vampiro procede a etapa seguinte tão logo pressinta a chegada desse momento preciso, esta consiste numa impressão do seu próprio circuito sobre a tenra massa energética do humano quase morto. Na prática, é uma simples cópia por contato, para tal o vampiro se posiciona às costa do infeliz e o abraça fortemente colocando seus braços poderosos em “x” sobre o peito do moribundo, erguendo-o alguns centímetros do solo. Vampiros mais fortes antecipam esse posicionamento, imobilizando a vítima pelo abraço antes mesmo da drenagem e cravando suas presa no pescoço por trás. Ganham com isso uma imensa eficiência e dificilmente desperdiçam matéria prima. Os fracos debilitam primeiro suas presas pelo dreno aberto por seus caninos, os quais inoculam de imediato um potente sedativo contido na saliva vampírica e com efeito extremamente rápido. É fácil, assim, ver donde vem a voluptuosidade do beijo dessas criaturas e um dos propósitos ocultos de sua sedução romântica e erótica.
E agora vem o engodo mais grosseiro veiculado pelas lendas e pelos pretensos conhecedores humanos. O CEV se deteriora se não for imediatamente ativado após sua confecção, isso exige que ele seja alimentado por uma fonte sangüínea humana: o transporte da energia retificada de que necessita. Que fique bem explícito que disse humana e não vampírica; mesmo porque vampiro não sangra, todo o sangue que consome coagula e é eliminado. E o sangue humano que, por ventura, lhe tenha restado da transformação se desidrata e pulveriza-se em todo seu organismo morto. Portanto, não importa o que teimem em dizer, nada circula em veias, artérias e capilares vampíricos, não estando vazias, conterão apenas um pó de aparência ferruginosa. O que deixa clara a necessidade de haver uma segunda vítima à mão do progenitor vampírico para servir de combustível ao circuito que acabou de reproduzir na primeira, despertando, assim, o recém-vampiro para sua nova não vida.
Uma dúvida pertinente é como o vampiro excreta o sangue coagulado após exaurir sua carga energética. Tendo se consumado a reprodução vampírica, o estômago passa a ser usado com o único objetivo funcional de saco de retenção e os intestinos se retraem e atrofiam. Portanto, o sangue coagulado se acumula no estômago até que uma convulsão violenta o expulsa vigorosamente pela boca; um grotesco e repulsivo vômito vermelho e espesso, algo nem um pouco agradável de se ver. E os vampiros têm que tomar o maior cuidado com ele, pois não o podem controlar, vindo-lhes de repente e sem aviso, o que causa um dano quase irreparável na fachada humana que cultivam, além de provocar um grande mal estar entre seus pares.
Logo é uma boa estratégia visar o estômago, se o oponente for um vampiro. Tendo estômago para suportar a repulsa, isso atordoará a criatura, propiciando alguns segundos preciosos para uma investida mais letal ou para simplesmente se pôr em fuga. No entanto, fiar-se unicamente nesse estratagema pode ser fatal, pois ele falha se o vampiro estiver de estômago vazio, o que muito provavelmente ocorrerá se o confronto se der na sua caçada em busca de alimento.
Aproveito esse comentário para apresentar alguns outros detalhes da anatomia vampírica. Com a retração dos intestinos, o reto se confrange e o orifício anal se fecha e solda-se como se houvesse ocorrido uma cauterização. A ausência de ânus identifica inequivocamente um vampiro, mas, como é óbvio, essa certeza só se obtém quando uma imobilização é conseguida e nem sempre isso é possível.
E já que o assunto é anatomia intima, falemos das genitálias. As mudanças nesta área são mais funcionais que físicas. Como as necessidades de esgotamento da bexiga e de reprodução sexuada foram abolidas, uma única função restou, a eliminação orgástica. Nos humanos esta função é efetivada por uma queima dos subprodutos indesejáveis resultantes do metabolismo energéticos. A fornalha desse incinerador é alimentada pela combinação comburente das energias sexuais masculina e feminina, que só igniza-se com o acumulo intensivo de sensações erógenas. Nos vampiros não há queima alguma, apenas um despejo de dejetos psíquicos no CEH ao qual se associou sexualmente; associação esta que se concretiza através do coito, não importando que seja vaginal ou anal. E, sem a necessidade de combustão, não há a exigência de características sexuais heterogêneas. Contudo, ressalto que a participação humana é indispensável; dois circuitos fechados jamais se associam nestes termos.
Assim revela-se a conveniência de as genitálias vampíricas manterem uma aparência o mais humana possível. E não só isso, revela também que os humanos, além de pasto, são as fossas energéticas dessas criaturas.
Retornando ao assunto reprodução vampírica, é importante mencionar que ela é uma “facultas”, isto é, um subsistema que se agrega ao circuito energético principal para proporcionar uma capacitação adicional. Existem um número imenso delas, tanto destinadas para CEHs como para CEVs. O modo de implementá-las pode variar muito, desde a transmissão hereditária até a compra no mercado negro. Sua aquisição é controlada por entidades que exercem domínio em todos os negócios humanos e, conseqüentemente, também nos vampíricos. Qualquer uso não autorizado é punido severamente por esses grupos, cujo poder não pode ser contestado. Deste modo, pouquíssimos vampiros têm permissão oficial de uso da facultas de impressão energética. E dentre este, a maioria só tem direito a produzir progênie bastarda; desprovida de qualquer facultas que o progenitor possa ter, inclusive a que tornaria fértil a nova geração de vampiros.
Essas poderosas organizações, as quais me referi, são compostas por humanos e unicamente por humanos; vampiros são excluídos como raça inferior e sua proximidade e existência só são toleradas por se prestarem ao serviço subordinado.
Não julgando o uso que fazem de seu poder, esses são seres magníficos; humanos autênticos no pleno exercício de suas potencialidades. São conhecidos como os “Humanos” ou os “Despertos” em compartida com os demais; os “humanos” ou os “sonâmbulos”. São tão longevos quanto os vampiros, mas não sofrem de suas mazelas, pois estão vivos. Como elite, perpetuam seu poder na ignorância que caracteriza a massa humana. A própria natureza ignota de suas existências se faz necessária para que os sonâmbulos não descubram até onde pode ir seu potencial. Assim, não são, em absoluto, super-humanos, o que acontece é que a humanidade, em termos de comparação, está num estado infra-humano.
Embora sejam minoria, há entre os Humanos aqueles que não compactuam com a Dominação e lutam contra ela deste os primórdios da civilização. Os que detêm esse poder forjado lograram minimizar seus esforços para libertar os humanos, lançando mão de um simples ardil: os apresentam aos homens como demônios terríveis ou espíritos tentadores, cujo único objetivo é desviá-los da conduta correta que os reconduziria ao ignavo Paraíso bíblico, lugar de onde foram expulsos justo pela insídia do maior de todos os demônios. Inventaram rituais repugnantes e imbecis com sacrifícios até de humanos, parodiando grotescamente as cerimônias da religião instituída entre os sonâmbulos e levando-os a crer que era assim a celebração realizada pelos corrompidos ao seu superior maligno. Essa ignominiosa missa negra foi posta muitas vezes como exemplo máximo da fealdade perversa que os decaídos promoveriam na terra. O êxito dessa ópera bufa foi tão surpreendente que inúmeros idiotas fantasiados de satanistas a adotaram como ritualística oficial de seus cultos secretos. E os rebeldes passaram, então, a sofrer com alcunha de filhos de Satan, o inimigo; enquanto, entre eles, se reconheciam pelo singelo chamamento de “filhos do homem” ou, em homenagem ao primeiro rebelde e primeiro filho do homem, “cainitas”.
O conhecimento superficial disponível para muitos “buscadores” afirma categoricamente que esse é o epíteto que identifica os vampiros e sua filiação mítica. No certo, se trata de mais uma artimanha engendrada para confundir incautos: com a anuência da facção de direita dos Humanos, os vampiros se apropriaram indevidamente do nome de seus mais implacáveis caçadores. Todavia, ainda conservam secreta e internamente o cognome herdado de sua ancestralidade mítica: “lebahitas”, que evoca uma estranha figura chamada Lebah. De que mitologia vem esse sujeito? Da mesma que veio Caim. Quem tem olhos que veja. Quem tem juízo que julgue.
0 Comentários