... se descortina no horizonte de eventos do universo. Mas, para isso, antes é preciso que “reconheça o que está diante de seus olhos e aquilo que estiver oculto lhe será desvelado; pois não nada oculto que não venha ser manifestado” (1) pelo ato de “observar cuidadosamente” sképtomai(2). A Paisagem Limiar está lá fora, pois sempre foi uma extensão negligenciada do real cotidiano; no entanto, não significa que seja a verdade. Não podemos prometer a verdade, nem que advirá alguma certeza de sua incursão por ela. Pois a verdade não faz parte do real, sendo a maior fraude já fomentada pelo intelecto humano. E ter certeza já é um engano por si só. O conhecimento honesto se fundamenta em premissas incertas: os postulados. Uma mente sem ilusões duvida. Uma inteligência perspicaz não se torna convicta. Um pensamento para ser livre precisa se livrar das amarras da verdade e não deixar se enredar por certezas.
Todo o conhecimento É construído sobre suposições, só podemos trabalhar com elas, nada nos pode dar certeza sobre nada. Isso parece péssimo para muitos, pois pensam que o conhecimento precisa ser certo e verdadeiro, qualquer proposição que não possa se firmar nestes termos não mereceria ser considerada. Mas até as ciências só criam hipóteses, teorias; nunca verdades ou certezas. Uma prova científica não é suficiente para estabelecer a verdade. Ela só diz que aquela hipótese não contraria as evidências nas condições de um experimento controlado. Fora destas condições ela pode não ser válida ou outra hipótese que a contradiga pode ser válida nas mesmas condições. Todos os cientistas honestos admitem isso: que só constroem modelos que simulam a realidade; mas que o real em si mesmo eles não conseguem descrever.
Sim, tudo são conjecturas, hipóteses, porém umas são mais prováveis que outras. Assim, a ciência adotou (e nós também) uma meta mais modesta do que aquela de buscar a verdade ou ter a certeza. Sua tarefa passou a ser desenvolver conjecturas a respeito do mundo que fossem o mais provável possível; teorias sem pretensão de serem exatas, mas que pudessem se mostrar plausíveis. Então, baseada em experiências e fatos anteriores poderia discernir entre as previsões qual a mais provável de ocorrer. Esse conceito não carrega o peso de um vaticínio ou certeza determinista, ele é apenas uma forma de dar valor estatístico às conjecturas sobre as possíveis conseqüências de um ato ou escolha. Neste contexto, a ciência ou qualquer ramo do conhecimento só pode falar em termos do “que provavelmente é”; saber o “que realmente é” não passa de metafísica arrogante e arbitrária daquilo que se chama ontologia. O sucesso relativo do método científico se deve em grande medida à sua capacidade de administrar fatores de riscos, isto é, de lidar bem com as possibilidades de falha envolvidas na formulação de qualquer hipótese a respeito da natureza.
Assim, nossos correspondentes de campo levarão sua mente numa visita guiada por paragens incertas e imprevistas. Eles transitam por esse lado obscuro da realidade que é descartado como pura fantasia; quando é nele que os eventos cruciais da história mundial se desenrolam incógnitos da massa humana. Conseguem ir além de nossa percepção ordinária, burlando o senso comum e voltando para contar o que viram. Percorrem veredas iluminadas apenas pelo brilho de uma chama bruxuleante que queima uma combinação inflamável de curiosidade investigativa e imaginação heurística, cuja impetuosidade é moderada pelo tino racional de um intelecto livre de preconceitos. Desenvolveram, então, essa diferença sutil que os distingue da maioria: não têm verdades a defender, nem crenças para se agarrarem. Seus relatos não têm nenhuma pretensão de serem verdadeiros, não são mais que apostas, onde estão cônscios dos riscos de errar. Não sendo movidos por certezas, suas alavancas são as dúvidas; autênticas propiciadoras das alternativas que tornam as decisões viáveis. Por isso, gostam de dar palpites, lançar suas idéias na berlinda e ver no que vai dar, sem receios de críticas ou contestações. Assim, deveriam ser chamados de “os inimigos da fé e da verdade”. Porque...
Ubi dubium, ibi libertas.(3)
1- Dito 5 do Evangelho de Tomé: “Jesus disse: reconheça o que está diante de teus olhos, e o que está oculto a ti será desvelado. Pois não há nada oculto que não venha ser manifestado”. É interessante notar que o verbo reconhecer é usado na acepção de considerar com atenção, examinar, observar, explorar. Sentido muito semelhante ao verbo grego sképtomai como se verá. Foi deste verbo que se derivou o termo grego skeptikós (cético) passando a designar o movimento dos filósofos conhecidos como hoi skeptikoi, isto é, os céticos ou os que fazem profissão de observar e examinar tudo atenta e cuidadosamente; nada asseverando, em nada acreditando e suspendendo qualquer julgamento de valor para considerar cada coisa com a devida isenção. Também é curioso que seja Tomé, o apóstolo cético, o suposto autor deste evangelho.
2- v.gr. sképtomai “olhar atentamente, observar, examinar, meditar, refletir”
3- "Onde há dúvida, há liberdade"